Brinquedos e razões: uma tentativa de entendimento.

Antonio Ferrara


  • …, além disso, a condução em São Paulo esta cada vez mais difícil.
  • Verdade. Eu estou cansado de viajar de Metro, principalmente com este calor… Mas, vamos lá! Chegou o trem. Vamos ficar ali ? Tem um lugar para sentar.
  • Não. Acho que vou ficar por aqui mesmo. Está bom. Sabe o que estou pensando, aqui em pé? Que sou um soldado romano com sua biga correndo no prado aberto. Po … Fico por aqui mesmo com minha biga. Tchau !!!
  • ???


Participei deste diálogo: eu era a pessoa que ficou com os pontos de interrogação ao final. Admirava a capacidade de meu amigo em poder imaginar-se um soldado romano, correndo com sua biga (acrescento saboreando o vento lhe acariciando o corpo e o rosto) em meio a um trem lotado no Metro. À parte o que poderia existir de “patológico” (ou não?) em seu comportamento, invejava sua criatividade em poder desfrutar daquela SUA realidade. Para mim, naquele o Metro não era mais do que algo de que eu pudesse reclamar por estar tao desconfortável.

Segundo Erickson, parafraseando Freud, “o jogo é a estrada real para a compreensão dos esforços do ego infantil para chegar a uma síntese “. Nesta paráfrase, Erickson privilegia a possibilidade que temos em, através da observação do jogo, entender o processo egoico de síntese, de arranjo, entre as pulsões existentes no Id e as “regras” introjetadas no Super-Ego mas, apesar da ênfase no aspecto da observação e do entendimento, Erickson deixa claro que no jogo existe o proposito de “alucinar o domínio que o ego exerce e, apesar disto, exercitá-los em uma realidade intermediaria entre a fantasia e a verdadeira realidade”.

Sem partir para interpretações do significado daquele instante, vejo meu amigo, agora, de forma diferente. “Brincando” de soldado romano, no mínimo, ele criava uma realidade diferente da minha; em sua realidade intermediária ele eliminava o desconforto daquele instante. Viajava estava “em férias com relação à realidade social e econômica.

Mas ainda me sobrava uma questão como ele arrumou uma BIGA ROMANA? Não estávamos em Roma, estávamos em São Paulo e pelo que sei, nem descendente de italianos ele era. Apesar do balaústre do Metro sugerir algo que se poderia apoiar com uma ou com as duas mãos, ele certamente teria coisas mais recentes e mais de nosso pais para inspiração; poderia ter-se imaginado em cima de um skate ou de uma prancha de surfe, por exemplo, que são brinquedos atuais e difundidos entre nos, relacionando o balanço do trem do Metro, à pista ou às ondas.

O que fazia com que ele escolhesse o tema de seu brinquedo, de seu jogo num tempo e lugar tao remoto?

Segundo Erickson, “as crianças, ainda que traumatizadas, escolhem para suas dramatizações o material lúdico que sua cultura põe à disposição e que possam usar de acordo com sua idade. O que está à disposição depende das circunstâncias culturais e, portanto, é comum ‘a todas as crianças que compartilham essas circunstancias.”

Era obvio que o conhecimento das bigas romanas era comum a todos os que haviam estudado Historia Geral; muitos livros que utilizei e filmes que assisti mostravam como eram aqueles veículos. Mas, por que escolher a biga romana (não tão comum) em lugar do skate?

“O que tem um significado comum para todas as crianças em uma comunidade… pode ter um significado especial para algumas crianças… Todavia, tudo isso pode ter, além disso, um significado único para crianças especiais… que por isso comunicam ao jogo uma significação particular”.

Parece que a biga romana tinha algum significado especial para meu amigo, significado que nunca alcancei em função de não ser um observador isento de emoção, no seu caso.

Sábado de manha. Sol quente. Pequena sala de madeira, com vários bancos compridos, comprimindo cerca de 30 estudantes de Psicologia em guerra com suas pranchetas, procurando anotar todas as palavras que eram ditas na anamnese de um caso psicótico.

A janela às minhas costas dava para o pátio interno do Hospital Psiquiátrico de mulheres onde eu estagiava.

Eu suava bastante e, a certa altura, abrindo um pouco a janela para arejar o ambiente, vi uma moca nua atravessando o pátio em direção a uma árvore. Caminhava lentamente, com passo firme e olhos fixos na copa.

Apanhou uma folha, deitou-se na grama à sombra e ficou brincando com aquela folha. Observei-a durante alguns instantes, imaginando quais fantasias lhe ocorriam enquanto brincava com a folha e refletindo sobre quem era mais “desequilibrado”: eu, amarrotado entre meus colegas num ambiente sufocante e de calor, ou ela, livre de censura em seu brincar com a folha, deitada na grama.

Sobrou-me a compensação de que eu poderia transitar entre realidades de acordo com minha vontade: poderia brincar de ‘soldado romano’ e, em seguida, voltar a reclamar do Metro. Ela, não imersa em sua fantasia, não mostrava possibilidade de transição para a verdadeira realidade do Hospital, naquele instante; mas parecia estar…


Antonio Mello de Castro Ferrara
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES – ECA